"O eu é feito de pedaços do outro. Tudo é do outro. Escutar é permitir a presença do outro. O aluno que eu escuto vem morar em mim. A presença do outro me completa."
(Bartolomeu Campos de Queirós)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Rabiscar para inovar

Rabiscar para inovar
                                (Anna Veronica Mautner)



"À primeira vista, deixar de lado o ensino da escrita cursiva só tem a ver com a entrada triunfal dos eletroeletrônicos nas salas de aula. Hoje podemos aprender a responder perguntas, desenvolver uma ideia, sem tocar num lápis ou numa caneta. Afinal, é para isso que estão aí todos os tablets do mundo.
Agora, em defesa da escrita manual, começo a argumentar: aprender a escrever é mais do que promover a legibilidade e visibilidade de uma ideia ou informação. Quando escrevemos à mão, em letra cursiva, estamos lançando mão de mecanismos da mente, que não apenas os necessários para a leitura. Não existem duas letras cursivas iguais. A letra de cada um de nós, por mais igual que seja à de muitos outros, é nossa marca registrada pessoal. O meu G é parecido com o teu G, que deve ter muito em comum todos os Gs escritos por todas as pessoas. Mas o meu G tem algo de diferente de todos e Gs e A, B, C, Ds. No meu G, entram muitos fatores: habilidade manual, se sou canhoto ou destro, se fui submetido a treino de caligrafia, etc... Cada letra que se escreve é resultado de um longo exercício e aprendizado pessoal. O adestramento para escrever pressupõe ter havido a etapa do rabisco, onde a mão se conforma com o lápis. Depois é que vamos fazer letra. Esse aprendizado de escrever uma letra ocorre ao mesmo tempo que os adestramentos para outras tarefas, como fazer laço, dar nó, tomar banho so­zinho, dobrar roupa, arrumar o estojo. Os médicos chamam a isto de motricidade fina, que fará parte do nosso bem viver, o resto da vida.
Quando a gente pula uma etapa na aquisição de habilidade, o próximo passo é prejudicado, uma vez que, provavelmente, depende do anterior. E serão prejudicados, daí em diante, vários outros passos requeridos pela vida, seja no artesanato, como o ceramista, ou até na feitura de uma tese de doutorado. Ser capaz de encarar o que foi feito e corrigir os deslizes, se necessário for, é vital para a boa finalização de tarefas.
Se eu não sei controlar os movimentos dos meus dedos, como é que eu vou juntar dois fios em uma tomada, amarrar uma gravata, manter em ordem a minha carteira de documentos? Documentos em papel ainda existem, não dá para funcionar só por botões. Só por meio de botões, não dá para tirar passaporte. A Polícia Federal quer documentos originais ou autenticados. Para tanto, precisamos ter os documentos arquivados em papel, em alguma pasta lá em casa. Para vender um imóvel, pedem-se documentos em papel. Assim como não existem duas caligrafias iguais, poderíamos dizer que não existem dois arquivos de documentos pessoais idênticos em sua ordem.
Por enquanto, a prática de movimentos regulares, pequenos, delicados e pessoais ainda faz parte da relação dos indivíduos com as instituições. Para viver, ainda precisamos de adestramento para lidar com objetos frágeis – a motricidade fina continua valendo e isso se começa na pré-escola.
Pela internet podemos nos informar, podemos até informar as instituições, mas em algum momento vamos precisar comparecer com papéis. No canteiro de obras, os desenhos e as informações, provavelmente, por muito tempo ainda serão por escrito. Será que viveremos um momento em que cada pedreiro terá um tablet na mão, um celular na orelha e um robô a seu serviço? E a medicina, será toda por internet e robôs? E a alma, será tudo por botão?
Nos primeiros anos de vida, temos que adquirir certas aptidões, interiorizá-las e torná-las nossas partes pessoais, no encontro com o mundo. Quem aprende a boiar saberá para sempre, assim como andar de bicicleta e escrever à mão.
A falta de exercício de aptidão pode impedir de imaginar. Se eu imagino pouco, não terei o que transcrever.
No mundo em que vivemos, onde inovar é o lema, as aptidões da primeira infância são ingredientes essenciais tanto para a forma quanto para o conteúdo. Assim era antigamente e assim continua sendo."

Artigo publicado na edição de novembro de 2011 da Revista Profissão Mestre

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