Rabiscar para inovar
(Anna Veronica Mautner)
"À primeira vista, deixar de lado o ensino da escrita cursiva só tem a ver com a entrada triunfal dos eletroeletrônicos nas salas de aula. Hoje podemos aprender a responder perguntas, desenvolver uma ideia, sem tocar num lápis ou numa caneta. Afinal, é para isso que estão aí todos os tablets do mundo.
Agora, em defesa da escrita manual, começo a argumentar: aprender a escrever é mais do que promover a legibilidade e visibilidade de uma ideia ou informação. Quando escrevemos à mão, em letra cursiva, estamos lançando mão de mecanismos da mente, que não apenas os necessários para a leitura. Não existem duas letras cursivas iguais. A letra de cada um de nós, por mais igual que seja à de muitos outros, é nossa marca registrada pessoal. O meu G é parecido com o teu G, que deve ter muito em comum todos os Gs escritos por todas as pessoas. Mas o meu G tem algo de diferente de todos e Gs e A, B, C, Ds. No meu G, entram muitos fatores: habilidade manual, se sou canhoto ou destro, se fui submetido a treino de caligrafia, etc... Cada letra que se escreve é resultado de um longo exercício e aprendizado pessoal. O adestramento para escrever pressupõe ter havido a etapa do rabisco, onde a mão se conforma com o lápis. Depois é que vamos fazer letra. Esse aprendizado de escrever uma letra ocorre ao mesmo tempo que os adestramentos para outras tarefas, como fazer laço, dar nó, tomar banho sozinho, dobrar roupa, arrumar o estojo. Os médicos chamam a isto de motricidade fina, que fará parte do nosso bem viver, o resto da vida.
Quando a gente pula uma etapa na aquisição de habilidade, o próximo passo é prejudicado, uma vez que, provavelmente, depende do anterior. E serão prejudicados, daí em diante, vários outros passos requeridos pela vida, seja no artesanato, como o ceramista, ou até na feitura de uma tese de doutorado. Ser capaz de encarar o que foi feito e corrigir os deslizes, se necessário for, é vital para a boa finalização de tarefas.
Se eu não sei controlar os movimentos dos meus dedos, como é que eu vou juntar dois fios em uma tomada, amarrar uma gravata, manter em ordem a minha carteira de documentos? Documentos em papel ainda existem, não dá para funcionar só por botões. Só por meio de botões, não dá para tirar passaporte. A Polícia Federal quer documentos originais ou autenticados. Para tanto, precisamos ter os documentos arquivados em papel, em alguma pasta lá em casa. Para vender um imóvel, pedem-se documentos em papel. Assim como não existem duas caligrafias iguais, poderíamos dizer que não existem dois arquivos de documentos pessoais idênticos em sua ordem.
Por enquanto, a prática de movimentos regulares, pequenos, delicados e pessoais ainda faz parte da relação dos indivíduos com as instituições. Para viver, ainda precisamos de adestramento para lidar com objetos frágeis – a motricidade fina continua valendo e isso se começa na pré-escola.
Pela internet podemos nos informar, podemos até informar as instituições, mas em algum momento vamos precisar comparecer com papéis. No canteiro de obras, os desenhos e as informações, provavelmente, por muito tempo ainda serão por escrito. Será que viveremos um momento em que cada pedreiro terá um tablet na mão, um celular na orelha e um robô a seu serviço? E a medicina, será toda por internet e robôs? E a alma, será tudo por botão?
Nos primeiros anos de vida, temos que adquirir certas aptidões, interiorizá-las e torná-las nossas partes pessoais, no encontro com o mundo. Quem aprende a boiar saberá para sempre, assim como andar de bicicleta e escrever à mão.
A falta de exercício de aptidão pode impedir de imaginar. Se eu imagino pouco, não terei o que transcrever.
No mundo em que vivemos, onde inovar é o lema, as aptidões da primeira infância são ingredientes essenciais tanto para a forma quanto para o conteúdo. Assim era antigamente e assim continua sendo."
Artigo publicado na edição de novembro de 2011 da Revista Profissão Mestre
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